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sábado, 31 de julho de 2010

CARTA AOS QUE FICARAM

 No antigo Paço da Boa Vista, nas audiencias dos sábados, quando recebia toda gente, atendeu D. Pedro II a um negro velho, de carapinha branca e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, se descobria o sinal de muitas penas e muitos maus tratos.

- "Ah! meu senhor grande - exclamou o infeliz -, como é duro ser escravo!..."

O magnanimo imperador encarou suas mãos cansadas no leme da direção do povo e aquelas outras, engelhadas nas excrescencias dos calos adquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranquilizando-o comovido" - "Oh! meu filho, tem paciencia! Também eu sou escravo dos meus deveres e eles são bem pesados... Teus infortúnios vão diminuir..."

E mandou libertar o preto.

Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondoso monarca recebeu a visita do seu ex-ministro; às primeiras interpelações de Ouro Preto, respondeu o grande exilado:

- "Em suma, estou satisfeito e tranquilo." E, aludindo à sua expatriação: - "É a minha carta de alforria, agora posso ir aonde quero."

A coroa era pesada demais para a cabeça do monarca republicano.

Aos que me perguntarem no mundo sobre minha posição em face da morte, direi que ela teve para mim a fulguração de um Treze de Maio para os filhos de Angola.

A morte não veio buscar minha alma quando esta se comprazia nas redes douradas da ilusão. Sua tesoura não me cortou fios da mocidade e do sonho, porque eu não possuia senão neves brancas e rígidas, à espera do Sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava desse calor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com a sua foice derrubadora. Resisti, porém, ao seu cerco, como Aquiles, no heroísmo indomável de quem  ve a destruição de suas muralhas e redutos. Na minha trincheira de sacos de água quente eu a via chegar quase todos os dias... Mirava-me nas púpilas chamejantes dos seus olhos, pedindo-lhe complacencia, e ela me sorria, consoladora nas suas promessas. Eu não podia,  porém adivinhar o seu fundo mistério, porque a dúvida obsediava o meu espírito, enrodilhando-se no meu raciocinio como tentáculos de um polvo.

E, na minha alegria bárbara, sentia-me encurralado no sofrimento, como um lutador romano aureolado de rosas.

Triunfava da morte e, como Ajax, recolhi as últimas esperanças no rochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses.

Minha excessiva vigilancia trouxe-me a insonia, que arruinou a tranquilidade dos meus últimos dias. Perseguido pela surdez, já meus olhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soçobrando em mar escapelado, no silencio da noite. Sombra, movendo-se dentro das sombras, não me acovardei diante do abismo. Sem esmorecimentos, atirei-me ao combate, não para repelir mouros na costa,mas para erguer muito alto o coração, retalhado nas pedras do caminho, como um livro de experiencias para os que vinham depois dos meus passos, ou como a réstia luminosa que os faroleiros desabotoam na superficie das águas, prevenindo oa incautos do perigo das sirtes traiçoeiras do oceano.

Muitos me supuseram corroído de lepra e de vermina, como se eu fosse Bento Labre, raspando-se com a escudela de Job. Eu, porém, estava apenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso crepúsculo. Quando me encontrava nessa faina de semear a resignação, a primeira e última flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a morte abeirou-se do meu leito, devagarinho, como alguém temesse acordar um menino doente. Esperou que tapassem com a anestesia todas as janelas e interstícios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto se fez sentir no meu cérebro, zás! cortou as algemas a que me conservava retido por amor aos outros condenados, irmãos meus, reclusos no calabouço da vida. Adormeci nos seus braços, como um ébrio nas mãos de uma deusa. Despertando dessa letargia momentanea, compreendi a realidade da vida, que eu negara, além dos ossos que se enfeitam com os cravos rúbros da carne.

- Humberto!...Humberto!... - exclamou uma voz longínqua - recebe o que te enviam da Terra!

Arregalei os olhos com horror e com enfado: - "Não! Não quero saber de penegíricos e agora não me interessam as seções necrológicas dos jornais."

- "Enganas-te - repetiu -; as homenagens da convenção não se equilibram até aqui. A hipocrisia é como certos micróbios de vida muito efemera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitos sufocados onde penetraste com as tuas exortações e conselhos. O sofrimento entornou no teu coração um cantaro de mel".

Vi descer, de um ponto indeterminado do espaço, braçadas de flores inebriantes, como se fossem feitas de neblina resplandecente, e escutei, envolvendo o meu nome pobre, orações tecidas com suavidade e doçura.
Ah! eu não vira o céu e a sua corte de bem-aventurados; mas Deus receberia aquelas deprecações no seu sólio de estrelas encantadas, como a hóstia simbólica do Catolicismo de perfuma na onda envolvente dos aromas de um turíbulo.

Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de jamins bordados de ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua glória.

Aspirei com força aqueles perfumes. Pude locomover-me para investigar o reino das sombras, onde penso sem miolos da cabeça. Amava ainda e ainda sofria, reconhecendo-me no pórtico de uma nova luta.

Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mãos. E voltei cá. Voltei para falar com os humildes e com os infortunados, confundido na poeira da estrada de suas existencias, como frangalhos de papel rodopiando ao vento. Voltei, para dizer aos que pude interpretar no meu cepticismo de sofredor:

- "Não sois os candidatos ao casarão da Praia Vermelha. Plantai, pois, nas almas, a palmeira da esperança. Mais tarde, ela desdobrará sobre as vossas cabeças encanecidas os seus leques enseivados e verdes..."E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurélio, no tocante à morte que me arrebatou da prisão nevoenta da Terra: - "É a minha carta de alforria... Agora posso ir aonde quero."

Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu coração.

Cronicas de além-túmulo - Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Humberto de Campos


FOTOS DO MEU FILHO MATEUS

MINUTO DE SABEDORIA - Reflexão para hoje

Não se queixe de abandono.
Ninguém está abandonado pelo pai.

Se notar que está só, que ninguém o procura,
faça o inverso: procure voce alguém
que precise de sua ajuda.

Visite os lares pobres, as crianças necessitadas,
os corações famintos de seu carinho.

Derrame seu coração afetuoso no seios daqueles
que sofrem e jamais se sentirá abandonado.